Sintonia

Assisto algumas cenas que protagonizei e não consigo me enxergar. Em que o ir foi sem querer, o fazer foi por fazer, na obrigação, por costume, ou ausências. Como um beijo sem sentimento. Um abraço entregue sem entrega. Como palavras proferidas sem pensar. Em que vários pensamentos, fortes o bastante para ausentar daqueles momentos o eu que deveria estar lá – o sentido, o motivo, o ser, a alma, o espírito.

Trago a memória acontecimentos em que corpo e mente se separaram, em que deixei o corpo como um mero fantoche do momento. A mente distante, a vontade insaciável, o corpo cobrindo o disfarce, pra não deixar a verdade escancarada para as visitas que vieram. Não há alguém em casa. Mas mesmo assim as deixei entrar. Não sei que comida ofereci, que bebida servi, nem que assunto conversei. Sei que sorri, mas sem transbordar. Que meu presente foi entregue sem interesse.

Vez ou outra me sinto deslocada, dividida, no que jamais deveria se dissociar: a vontade do ser, o ser do estar, o pensamento da ação, a ação da emoção, a emoção do que de fato inspira.

Consigo perceber porque isso às vezes ainda acontece, mas nem sempre consigo controlar. A dissociação nem sempre é prevista, de repente o corpo quer seguir suas próprias vontades sem razões. E outras a razão vai além do que o corpo pode exprimir ou suportar. De repente o corpo não sente, a razão falha, o eu falta. De repente o instante não basta, não preenche, o motivo se perde, o tesão acaba.

Alienação perigosa, pois seu fruto não alimenta, ilude com aparências, mas tem gosto ruim. Alienação traiçoeira, faz alguns minutos parecerem uma eternidade, quando na verdade é uma perda de tempo, as aceitações transforma em negação, deixando a sensação de que não deveria ter acontecido, de que existiu, mas que não passou por aquele momento vivo.

Nesse estado mórbido, há pessoas que surgem e nos ressuscitam, há emoções que nos fazem respirar de novo, motivos que fazem corpo e mente voltarem a se movimentar em sintonia. Trazem o fôlego que faltava, a vida de volta. Há pessoas que independente do momento, nos deixam sempre a sensação de que estamos em casa. Pode vir visitar o momento que for, pois corpo e mente permanecem ligados por um elo de prazer e vibrações em harmonia. Há pessoas que nos mantêm vivos por tanta vida que trazem. E tão importante quanto ter pessoas assim por perto, é ser quem leva vida pra vida de outras pessoas.

Aqueles que transbordam o ser em cada estar não só existem, mas vivem. Não sendo uma questão de resistir a momentos sem vida, mas de não se emprestar a esses momentos. Ter consciência das faltas que bloqueiam essa ligação fundamental entre o corpo e a mente e preenchê-las do que faz bem.


Assinado: Jéssica Flávia Oliveira.
/Colagens de Autores Desconhecidos

     

1 comments:

  1. como uma menina, outrora tão recatada, vira esse turbilhão de mulher em um piscar de olhos?
    qual é a gota d`agua que a faz pirar? ou seria transbordar?
    uma resposta em um belo texto me faria muito feliz.

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